Diário de um Agente (Parte 1): Tentativa de resgate no Plantão

Ouço uma buzina do lado de fora da minha casa. Já são quase 16h e, pelo jeito, minha carona para o trabalho está um pouco adiantada. Sou de Bauru (SP), mas não trabalho na cidade.  

Viajo 100km na caçamba de uma caminhonete D20 de um colega, junto com outros companheiros de serviço.  

Sou Agente de Segurança Penitenciária, mas dificilmente nos chamamos assim – às vezes somos só agentes ou então ASPs, algumas vezes guardas e, para os mais antigos (bota antigos nisso), os GPs, sigla para guarda de presídio.  

Viajo porque preciso. Nosso destino é a pequena cidade de Iaras, na região de Avaré, interior de São Paulo. Lá tem clínicas de recuperação de dependentes químicos, um conhecido acampamento do MST, uma Fundação Casa e a Penitenciária de Iaras, onde trabalhamos.   

Logo que atravessamos a cidade, após mais ou menos uns 2 km de vicinal, já é possível enxergar as muralhas e torres, iluminadas por um tom amarelo forte no cair da noite. Um quadrado de concreto que brota no meio do canavial.  

É ali onde vamos entrar e “picar” o cartão de ponto às 19h. Só não sabemos ao certo – nem eu nem os colegas – se vamos conseguir sair.   

Onde vivem os monstros  

O ano é 2001 e o presídio em Iaras tem um perfil completamente diferente do que possui hoje.  

Nessa época, para estar preso naquele estabelecimento prisional, era preciso ser um reincidente grave, líder de facção criminosa ou ter tentado fugas ou resgates.  

Mal passo o gigantesco portão na entrada da unidade e o colega do outro plantão da portaria já nos dá o aviso: “Fica esperto que hoje tem denúncia de resgate pra essa madrugada”.  

Assim era minha vida. Sigo para o raio (pavilhão onde estão as celas e espaço de convívio dos presos). 

O plantão está cheio – naquela época, como a unida[–de é de segurança máxima – todo o quadro funcional era preenchido.  Tensão a noite inteira, são 12 horas sem piscar o olho nem relaxar.   

A informação que temos é a de que vai acontecer, e será bem ali onde estou trabalhando, só não sabemos quando nem como.  Se ainda tenho medo? Claro que sim. Mas confesso que estou um pouco calejado. Entrei no sistema prisional para o meu primeiro dia de trabalho em dezembro de 2000.  

No meu 15º plantão, a cadeia já tinha “virado” (tentativa dos presos tomarem o controle com violência). Flagramos um túnel em uma das celas e, diante da fuga frustrada, os internos iniciaram uma rebelião. 

Não fomos feitos reféns e conseguimos tirar uns colegas que tinham ficado para trás – mesmo sendo novato, a equipe estava unida, isso é fundamental.  

Hoje, olhando par trás é mais fácil credenciar à experiencia dos Agentes mais velhos o sucesso na contenção. Não foi fácil. Entramos em choque com os detentos, apanhei e vi companheiros de trabalho apanharem muito, com pauladas e golpes de “naifas” (armas pontiagudas improvisadas).   

Infelizmente, não foi apenas isso que vi. No 15º dia de trabalho nesse emprego, presenciei quatro presos serem mortos por rivais no meio da confusão.  

Um foi empalado. Outros dois tiveram os olhos arrancados. Um deles teve a cabeça decepada e seu coração extraído.   

Eu tinha 20 anos de idade.    

O que estou fazendo aqui?  

Essa é a pergunta que muitos agentes se fazem e muitos nos fazem. Entre os colegas, homens e mulheres, encontramos pessoas de todas as idades, regiões do Estado e até classes sociais distintas.  

Tem gente que veio da roça, outros são da cidade grande, de bairros onde é impossível revelar sua profissão – ou corre risco de vida.  

Tem gente que vira ASP para poder estudar, outros se formaram, mas viram a chave da profissão. Apesar desses tipos tão diferentes é possível sentir um elemento central que nos unifica, principalmente após o curso de formação. Todos são ASPs e passam a viver intensamente o que de nós se exige: a manutenção da ordem e disciplina nas unidades prisionais.  

Como disse, estava com 20 anos, atuava na área de processamento de dados, mas andava insatisfeito com meu trabalho. Uma pessoa próxima da minha família já era do sistema prisional e me sugeriu essa nova carreira. Eu conhecia essa pessoa – hoje está aposentado – e admirava sua carreira 

Aceitei a sugestão e aqui estou, em Iaras, trancado com mais de 1.500 presos de alta periculosidade. Nos primeiros dias, quando ainda estava aprendendo a profissão, um senhor desconhecido, no meio das ruas da pequena cidade, falou alto para todo mundo ouvir – quem leva drogas e armas para a cadeia são os próprios funcionários. Aquilo me doeu por dentro, mas resisti.   

A segunda vez que falaram de forma tão generalizada sobre a função do ASP eu não tive assim tanta frieza. Era o diretor de cinema Hector Babenco, que faleceu em 2016, e estava em Bauru lançando o filme Carandiru. Mais uma vez, de forma genérica e usando exemplos do antigo complexo prisional na Zona Norte de São Paulo, o cineasta disse que todo funcionário era corrupto e colaborava para o declínio do sistema.  

Não resisti. Levantei a mão e bati boca com ele. Como assim? Trabalhamos em conjunto, lado a lado. E temos uma ética severa. Vigiamos um ao outro. Se um colega fizer besteira é capaz até de partirmos para a violência física. Não é bem assim como o senhor está falando não, viu. Pode-se escutar os aplausos dos presentes. 

 

Continua em: Diário de um Agente (Parte 2): Do lado de fora, é preciso esquecer a cadeia.  

 

Os relatos do Blog Impossível sem Agente são histórias reais, produzidos pelos próprios agentes do sistema prisional. Suas identidades mantem-se preservadas de maneira opcional, por questões de privacidade e segurança.  

 

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