Diário de um Agente (Parte 2) Do lado de fora, é preciso esquecer a cadeia

Já são quase 7h da manhã, hora de contar os presos novamente. Graças a Deus não foi nesse plantão que passamos pela tentativa de fuga… Se você está lendo este relato é importante saber que ele é a continuação do Diário de um Agente – Parte 1, que você pode ler clicando aqui.

Isso não é brincadeira. Nas blitzes, as revistas na Penitenciária de Iaras, já apreenderam rifles, armas diversas e até dinamites e explosivos C4.

– “Ó a contagem!” Grito para um preso isolado no castigo. Peço para ele mexer o braço. Gosto de contar pessoas, quero vê-los vivos no meu plantão, enquanto cumprem a pena.

A paz de dentro para fora

Pode parecer algo simples, mas a contagem é uma das ações centrais do dia a dia de um profissional do sistema. E não se refere apenas aos números de pessoas sob custódia – é nesse momento que o guarda sabe como está o clima na cadeia e pode ter informações que vão ser fundamentais para o dia a dia na unidade.

O bom andamento da relação dos funcionários com os internos não se reflete apenas na rotina do lado de dentro das centenas de caixas de concreto e ferro do país.  Nem sempre é lembrado, mas a dinâmica do lado de dentro de prisões têm consequências diretas nos crimes das ruas – quem é capaz de se esquecer dos ataques a policiais e agentes penitenciários em 2006, para citar apenas um exemplo emblemático?

Mas não são apenas criminosos inveterados, temos toda a sorte de pessoas dentro de uma prisão. Alguns não puderam pagar uma pensão alimentar, outros roubaram comida, nem todos carregam o crime em suas almas.

Uma vez passei por uma dessas celas, no castigo, altas horas da madrugada, e percebi uma movimentação atípica ao olhar pela pequena janelinha. O detento se preparava para tentar tirar a própria vida. Que ideia é essa, pare com isso já, vamos conversar!

Ele atravessava um problema familiar, do lado de fora do presídio. Naquele momento, aquilo parecia algo irreversível e sem solução. Ao conversar, ele dividiu um pouco o peso que carregava e desistiu do que ia fazer.

Costumo dizer que, em toda a segurança pública, a carreira do Agente de Segurança Penitenciária é a que mais possibilita a compreensão da humanidade do indivíduo preso. Em anos de cadeia aprendi a entender que não se pode virar completamente as costas para o problema.

Não se trata de passar a mão na cabeça de preso, mas sim de agir com racionalidade. O vácuo do poder público não contém a violência, ao contrário, favorece que as laranjas podres assuma o controle e cobrem a lealdade de milhares de novos “recrutas” para o crime. Entender onde endurecer e onde respaldar é um trabalho silencioso que poucos querem ou conseguem enxergar, mas que traz consequências diretas para a vida fora das grades. É minha opinião.

Naquela noite algo estava errado na mente daquele presidiário. Mas, em 2004, fui eu que passei por um problema psiquiátrico. Estava atravessando uma situação particular difícil e as doze horas dentro da cadeia não me ajudavam nessa condição.

Tinha vergonha de me abrir, não conseguia aceitar que estava vivenciando um quadro de depressão.

Felizmente um anjo apareceu no meu caminho. Um médico psiquiatra da unidade percebeu que algo estava errado, consegui desabafar com ele e, sem cobrar nada, esse profissional me conduziu em tratamento por dois anos em seu consultório particular.

Essa pessoa que tanto fez por mim nos deixou ano passado, vítima de um câncer. Carrego com ele uma dívida eterna de gratidão e compreensão.

Graças a essa ajuda que recebi, hoje consigo enxergar no colega ao meu lado na radial alguma mudança de comportamento ou sinal de que algo não vai bem no seu dia a dia.

Tenho, inclusive, a possibilidade de ir até ele e perguntar o que está acontecendo, oferecer e indicar ajuda especializada.

É muita pressão. Se você não é do sistema prisional, é até difícil descrever. Se você trabalha em presídios, sabe muito bem do que estou falando.

Saber separar os mundos

Deixem a cadeia dentro da cadeia. É o que posso dizer aos tantos novatos que entram para a carreira e vão passar alguns anos longe de casa e da família, morando em repúblicas e trocando os plantões para poder manejar a vida:

Quando termina o plantão, o Agente precisa “virar a chave” e esquecer o presídio – nem todos conseguem. Tratar do assunto o tempo todo, na hora de lazer, descanso, família, pode não parecer nocivo no começo, mas com o passar dos anos vira uma bola de neve na sua mente.

Terminado o plantão, o dia já amanheceu e lá vamos nós para a caminhonete de novo, é hora de percorrer mais 100km até Bauru.

Chego em casa às 8h e, antes de descansar, fico no sofá um pouco e assisto à TV que já está ligada. Descubro um provável motivo para minha noite sem ocorrências na penitenciária: o telejornal avisa que um carro foi interceptado pela Polícia na Rodovia Castello Branco repleto de armamentos pesados em direção ao interior de São Paulo. Não foi dessa vez.

Haveria outras. Muitas outras.

Já se passaram quase vinte anos desses acontecimentos e meu sentimento ainda é o mesmo. Hoje já tenho 39 anos. A área de TI ficou no passado, agora sou formado em Direito. Não trabalho mais à noite e nem em Iaras, já estou lotado em Bauru.

Em casa, fecho os olhos e consigo pensar em como esses vinte anos passaram rápido entre os portões de ferro das Penitenciárias e CDPs onde trabalhei, fiz blitz, ajudei em transferências e tenho a certeza que contribui para contenções e, quem sabe, um pouco de esperança.

As dificuldades são muitas e novos desafios aparecem dia após dia. Mas sei que minha rotina não é em vão – penso que o agente exerce, à sua maneira, uma contribuição para a paz nas ruas, nas cidades. É uma forma de colaborar com o presente e o futuro dos nossos filhos, de todos nós.

Esta é minha carreira e me orgulho dela. Não vou deixar o meu nome, mas tenho certeza que você se enxergou, ao menos um pouco, nessa invisibilidade.

Leia também: Diário de um Agente (Parte 1): Tentativa de resgate no Plantão

Os relatos do Blog Impossível sem Agente são histórias reais, produzidos pelos próprios agentes do sistema prisional. Suas identidades mantem-se preservadas de maneira opcional, por questões de privacidade e segurança.

É Agente Penitenciário, parente ou amigo de profissionais do sistema e quer dividir sua história? Envie uma mensagem para contato@impossivelsemagente.org

 

 

 

seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *