Viver com uma Policial Penal (Parte 1) – os desafios

De acordo com a pesquisa Monitor da Violência, com dados de 2018, é possível afirmar que o Brasil possui aproximadamente 100 mil policiais penais. Um alto número? Pelo contrário: o mesmo estudo revelou que, à época, o país acumulava quase 700 mil presos.  

Mas, por trás das estatísticas, existem vidas, que se multiplicam em laços afetivos e de sangue, e nos levam a lembrar que também existem cem mil famílias impactadas, que tiveram que aprender a viver com os reflexos diretos dessa dura realidade em seus lares e círculos sociais.  

Impossível sem Agente já tratou um pouco da complexa rotina de um policial penal em Diário de um Agente (parte 1) e Diário de um Agente (parte 2) . São profissionais, como muitos no Brasil, que saem bem cedo de casa, muitas vezes trilham vários quilômetros na estrada, em carros organizados entre caronas, para poder render o plantão da noite anterior – em respeito ao colega que passou a madrugada na carceragem, entre tantas outras dificuldades, porém as coincidências com outros trabalhadores param quando refletimos sobre seus “escritórios” e “postos de trabalho”… 

Hoje, traremos outra perspectiva dessa realidade muitas vezes esquecida: a ótica dos familiares. Acompanhe essa história real, de uma colega de trabalho e sua família, dividida em dois capítulos que, coincidência ou não, pode se refletir nas dezenas de milhares de guerreiros e guerreiras que também dedicam suas vidas para uma sociedade mais tranquila. 

“Até sabia responder o que a mamãe fazia, mas…” 

O ano era 1992 e M. (vamos utilizar apenas a inicial para preservar sua identidade), que hoje tem 53 anos, à época ainda era uma jovem de vinte e poucos anos, com duas crianças, vivendo no interior de São Paulo. 

“Fiquei sabendo de um concurso, que era o que eu precisava para minhas necessidades financeira e social – e o edital dizia que a vaga era aqui para minha cidade”, relembra.  

O concurso, como você deve imaginar, era para ser agente de segurança penitenciária, a atual Policial Penal. Aprovada, recebeu o que ela chama de “choque de realidade” ao passar a conviver diariamente com a rotina de uma com a rotina de uma unidade prisional de regime fechado, para presos condenados e que, após anos de um clima de muita tensão, foi convertida ao regime semiaberto – hoje denominados Centros de Progressão Penitenciária (CPP).  

Em casa, seus filhos passaram a ver a mãe em uma nova rotina. Os plantões 12 por 36 ou, doze horas trabalhadas, seguidas de trinta e seis horas contínuas de descanso ou, ainda, jornada dia sim, dia não.  

Por outro lado, nem tudo o que acontecia no seu “dia no escritório” podia ser dividido ao chegar em seu lar – pelo contrário.  

“Sempre mantive o sigilo inerente à profissão com meus familiares”, recorda-se a policial penal, uma conduta que manteve pelos 27 anos que já acumula no sistema.  

Uma de suas filhas, hoje com 15 anos, conta que, durante a infância, quando perguntavam na escola “até sabia responder o que a mamãe fazia, mas não sabia explicar certinho como o era o ambiente”.  

Ser mulher e ser Policial Penal 

A nova fase na vida de M. dividia a alegria da conquista merecida de um cargo público com a difícil realidade profissional do sistema prisional. Mas, na primeira metade dos anos 1990, não sofreu apenas a pressão de lidar com os presidiários. 

“Encontrei um universo machista, que não reconhecia as funcionárias mulheres como trabalhadoras e as tratavam como alvo, ora insinuando com ‘brincadeiras’ desrespeitosas, ora ‘castigando-as’ com tarefas de maneira assoberbada por não terem tido sucesso no assédio moral”, relembra.  

Diante desses constantes obstáculos, ela atravessou com persistência e, como afirma, superando suas concepções de vida, valores, capacidades emocionais e cognitivas e suas peculiaridades hormonais. 

“A realidade dentro do sistema prisional para a mulher é sobreviver a cada dia, é um reconstruir-se constante”, ressalta.  

“A realidade dentro do sistema prisional para a mulher é sobreviver a cada dia, é um reconstruir-se constante”, M., agente de segurança penitenciária  

Na parte “prática” da profissão, a servidora conta que sentiu muito para se adaptar aos procedimentos da revista pessoal às visitantes – como era uma unidade masculina.  

Atualmente, com o advento das técnicas de raio-x e scanner na entrada dos visitantes, ao menos essa situação que ela classificava como grande exposição e constrangimento, foi atenuada.  

Mesmo assim, diante de tantas dificuldades, a rotina sempre foi bem equilibrada, apesar de não ser possível separar, como ela mesma diz, a trabalhadora da esposa, dona de casa e mãe.  

No entanto, tudo mudou a partir do mês de maio do ano de 2006.  

A morte à sua frente 

No estado de São Paulo, no dia 12 de maio de 2006, uma facção criminosa coordenou rebeliões em 74 presídios, quase que simultaneamente. Nas ruas, confrontos e ataques contra forças policiais e de segurança resultaram, em poucos dias, em 564 mortos – 59 deles eram agentes públicos, entre policiais e policiais penais. A partir de agora, a conduta de M. abandonava o total sigilo e a divisão entre presídio/casa. As informações e rotinas passaram a ser compartilhadas, pela segurança dela própria e de sua família. 

“A tensão era enorme: eu sou policial penal e também tenho policiais na família – temia por nossas vidas”, desabafa. 

Em casa, tudo mudou. “A família toda nos auxiliou, nunca estávamos ou saíamos sozinhos. Todos estavam em alerta na tentativa de reduzir as oportunidades de ataques contra nossas vidas”, conta.  

Entre os amigos da filha caçula, espanto: “Ficavam não apenas ‘chocados’ por saberem onde minha mãe trabalha, mas expressavam preocupação por tamanho perigo”, conta. 

Hoje é possível dizer que eles enfrentaram e superaram, juntos, todas as ocorrências daquele período tão emblemático – e que saíram mais fortes. 

No entanto, nem tudo são rosas para quem encara a pressão constante no dia a dia da profissão 

No próximo relato o pavor de acordar com a sentença de morte na porta de sua casa e o papel da empatia e compreensão de quem é “fora do sistema” 

Continua em: Viver com uma Policial Penal (parte 2) – empatia e compreensão 

Os relatos do Blog Impossível sem Agente são histórias reais, produzidos pelos próprios agentes do sistema prisional. Suas identidades mantem-se preservadas de maneira opcional, por questões de privacidade e segurança.  

É Agente Penitenciário, parente ou amigo de profissionais do sistema e quer dividir sua história? Envie uma mensagem para contato@impossivelsemagente.org  

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